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— Rapaz, fazia muito tempo, nem lembrava mais.
— Verdade. Não sentia tanta falta assim, mas a de ontem também assisti.
— A emoção não é a mesma de estar lá, corpo presente.
— Não é.
— Mas mesmo assim valeu. Não valeu? Você viu a falta na entrada da área? Quarenta e quatro do segundo. Pra mim foi dentro, aquele juiz… vendido, claro. Certas coisas não mudam nunca.
— Não mudam.
— Que foi?
— Que foi o quê?
— Estou dizendo que o juiz roubou pro seu time e você não fala nada?
— Olha, não sei se o juiz roubou. Acho que foi fora da área.
— Acha? Você acha? Em outros tempos você já estaria baixando o lance pra me esfregar no nariz, e lendo os… lendo não, gritando as análises dos comentaristas na minha cara. O que houve? Não gosta mais, não vê mais graça? O que acontece?
— Então. Análises dos comentaristas, né? Pois é, análises. Eu estaria falando, ou melhor, gritando as análises no seu ouvido, como você disse. Acho que mudei um pouco.
— Um pouco?
— Ou muito, não sei. Análises… é isso. Essa palavra geralmente é usada para coisas sérias. Pelo menos deveria ser. Mas um jogo… O que é um jogo? O que tem de sério numa mesa cheia de entendidos, aqueles ares de importância, aquelas análises todas… sobre um lance! Sobre um jogo?
— Você não pensava assim.
— Mas agora penso.
— Nossa. Foi a quarentena?
— Não sei se foi a quarentena. Mas não vou mais usar o termo “análise”, não para isso, não para lances de esporte, não vou. Quem dá importância para esse tipo de programa, no fundo, torna-se responsável por esse pessoal achar que está debatendo um assunto sério. Quem dá importância para isso torna-se responsável pelos salários estratosféricos dos jogadores. Quem dá importância…
— Pera lá, pera lá! Quer dizer que eu sou o responsável pelos jogadores ganharem bem? Só faltava essa. Quem te viu quem te vê.
— Você, sim. Você, eu e os milhões que dão força para esse esporte ter se tornado o que é. Todos nós somos responsáveis por isso, por essa situação. Todos nós damos impulso para esse descalabro a cada vez que gastamos nosso tempo, nosso precioso tempo, assistindo 22 milionários brigando por uma bola, enquanto o mundo está nessa situação. A situação do mundo é que é séria, ela é que merece análises profundas, ela é que merece uma introspecção de todos nós, ela é que merece uma “torcida”, se quer saber, por alguma melhoria. Não um jogo, não um lance.
— Pirou. Só pode, pirou. Você disse que assistiu ontem. Não foi? Então também deu força para o esporte. Ou não?
— Tem razão, dei força. Mas foi a última vez. A última. E me faz um favor? Não vamos mais conversar sobre jogo e jogadores. Parece um vício. Não fale mais disso, por favor.
— Não falo, não falo. Vamos ver até quando… Deixa ver ser entendi. Quer conversar sobre coisas sérias, certo? Que tal as novas descobertas da astrofísica e da antropologia? Física quântica? Tudo assunto sério.
— Não adianta, você não entende. Essa situação foi só um gatilho, um despertador que me fez ver o absurdo que é darmos apoio a algo que não traz proveito a ninguém, nem a um único indivíduo, muito menos à humanidade em geral.
— Como é que é? Como não traz proveito? E a emoção? E a alegria do gol? A tristeza vai embora nesses momentos! Não vai? Isso não conta?
— Panis et Circencis…
— Quê?
— Nada. Preciso ir.
— No meio do terceiro chopp? Vixe, tá mal mesmo. Posso saber o que de tão importante tem pra fazer?
— Vou ler um livro.
— Ah…, boa. Tchau então.
— Tchau.
Roberto C. P. Junior
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Série Diálogos
1. O Jardim
2. A Percepção
3. O Jogo
4. A Briga
5. A Desconfiança
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6. A Reencarnação
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